sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Algo Bravia

Algo bravia
Mas de raízes fortalecidas
Pela dureza
Da agreste encosta da serra
Assim são as flores
Campestre
Irradiam tanta beleza
Transmitem segurança
Na dureza da vida
Ester (Encarregada de Educação)

domingo, 21 de novembro de 2010

Novos Talentos Literatura

Frenesim na Meia-Idade

- Olha. Olha quem está ali!
- Quem? O empregado?
- Não… aquele senhor com um casaco de cabedal luzidio sentado ao lado do balcão. Aquele com ar penteadinho.
- Não… não pode ser... Não é ele.
- Estou-te a dizer que é ele… olha bem. Vês como tenho razão?
- Ele agora também fuma? Nunca o vi fumar.
- Achas que ele fumava à frente das câmaras? Só se fosse uma marca de cigarros bem cara e mesmo assim duvido…
- Como é que uma pessoa como ele vem a este sítio tão “subúrbio”, com um cheiro tão reles?
-Olha, pediu um café. Agora está a mexê-lo, mas não deitou açúcar! Como é que ele consegue beber um café com um sabor tão amargo? Até me sinto mal por estar no mesmo café com uma pessoa com a sua classe, quanto mais beber do mesmo café!...assim sem classe nenhuma.
- Eu estou espantado! Já viste que o almoço dele é apenas café e cigarros… como é que é possível ele comer só isto?
- Deixa-me olhar bem para ele! É mesmo ele. Está velhote. Na televisão parece mais jovem.
- Ainda não acredito que seja ele…
- Mas olha que é.
- Ele levantou-se e vai sair. Ele vai sair!
- How are you this morning? Are you fine? Bye.
- Não posso. Ele falou para nós! Ele falou para nós!
- Podia morrer agora, e morria feliz… o meu actor preferido no nosso café, e ainda por cima, dirigiu-nos a palavra… como é que é possível? Ele é tão chique. Viste a classe dele. E o casaco tão fino.
- Deve ter-nos visto a conversar sobre ele…
- Pois, se calhar, foi.
- Boa tarde o que é que vão desejar?
- Café.
- E cigarros.
- Café e cigarros.
Francisco Barata

sábado, 20 de novembro de 2010

Transparente Opaco

 Como falar se são os lábios que nos tocam? Como viver estando preso dentro de um armário de madeira sem nunca ser tocado pelo calor e aconchego dos dedos, dormindo e vivendo silenciosamente ao lado de muitos outros iguais a nós? Como viver sentindo-nos culpados por não sermos de cristal mas apenas de vidro cobertos de pó? Desde que fora feito pelas mãos toscas e cheias de calos do vidreiro que o meu sonho era entrar nos salões de festa da Casa de Verão. Ver os cristais a reflectir a luz dos candeeiros dependurados e olhar para os azulejos, que cobriam toda a superfície, nos quais se dançavam valsas com passos leves e suaves como a brisa do vento. O meu desgosto de morte nesta vida era não ser de cristal, não dar luz, não ter beleza. Não ser como os que me rodeiam e saem à noite onde acontece magia, onde são acariciados, imaculados e não estão cobertos de pó. Onde não são esquecidos.ler mais aqui
Francisco Barata

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Homenagem a Fernando Pessoa

Triste ser aquele,
Que inveja a vida de seu gato
Enquanto escreve cartas ridículas
E deseja ser pó da estrada
Relembrando a meninice
Em que brincava com a rapaziada
E era indiferente ao mundo.  

Dono da solidão
Que caminhando,
 Pela poeira do chão
Olha para o cinzento do mar
E chora pelos navegadores portugueses 
Que se perderam no limiar do horizonte
E que não conseguiram voltar.

Chora lágrimas salgadas
Enquanto joga
Um contínuo jogo de xadrez
Na calçada do Chiado
Bebendo o café que,
 Lhe traz a esperança
De voltar a ser criança.

Entre outros,
Foi Reis, Campos e Caeiro.
Mas nunca foi só Pessoa.
Nunca foi inteiro.
Quis ser grande e foi.
Quis ser mais do que Pessoa
E ainda o é.
Para ser grande,
Quis ser um todo dividido.
Um todo unido,
Pela poesia,
Pela escrita,
Por um soneto que esquecia.

Triste destino o do cego,
Que canta pela estrada
Enquanto o seu coração,
Lentamente se quebra,
Na fresca noite de silêncio,
Na fresca noite calada.
Francisco Barata

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

a fava de colombo

No Verão de 2009, ao passear à beira-mar na Praia da Vieira, encontrei uma semente como nunca tinha visto, com a forma de um disco achatado e cerca de 3cm de diâmetro. Pensei como é que ela poderia ali ter chegado. Poderia ter vindo a flutuar desde zonas tropicais, ou poderia ter sido lançada de um navio, o refugo de contentores que transportam plantas secas que estão à venda nas lojas de decoração... Levei-a para casa e guardei-a.
Alguns meses mais tarde, estava a ver na BBC Prime um episódio da série "Coast", quando mostraram um indivíduo que, numa aldeia da costa inglesa, se dedicava a coleccionar objectos trazidos pelo mar. Mostraram o barracão onde ele guardava o espólio e um caixote cheio de sementes iguais à minha. Fiquei a saber que em inglês se chamam "sea hearts", corações do mar.
Uma pesquisa na net levou-me ao fascinante mundo das sementes e frutos que flutuam nos oceanos da Terra. Há muitas dezenas de espécies, provenientes em especial das zonas tropicais. Algumas percorrem distâncias enormes e podem manter-se a flutuar durante trinta anos. Há pessoas que as estudam, coleccionam e comercializam, muitas são usadas na bijutaria. A minha semente pertence a uma espécie de leguminosa trepadeira da Améica do Sul, Entada gigas, abundante nas bacias do Amazonas e do Orinoco, cujas vagens podem atingir 2 metros de comprimento. Ao caírem nos rios são levadas até ao mar e seguem para norte, na corrente do Golfo acabando algumas por atingir as praias da Europa ocidental.Tradicionalmente foram usadas para fazer porta-moedas ou como talismã para os marinheiros. A recolha dessas sementes nas costas europeias, antes da época dos descobrimentos, deu origem a muitas lendas de terras submersas ou de terras distantes. Diz-se que estas sementes, conhecidas nos Ares como "favas de Colombo", terá inspirado Cristovão Colombo na procura do Novo Mundo.
Para saber mais, pesquisar "seabeans", ou consultar:
http//waynesword.palomar.edu/plmay97.htm
Jaime braz

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Clima

O frio não me assusta.
Não me mantem preso em casa!
A mim o que mais me custa
sou eu, prisão de mim próprio...

Às vezes chego a sentir ódio
de mim, ou até pena.
Já sonhei que o ópio
será o fim, a salvação da minha vida terrena.

...
O calor a mim não me afronta.
Não me faz perder a respiração!
O que me sufoca e confronta
sou eu, que não me largo por um momento...

Quem me dera por vezes ficar isento
de mim mesmo por uns instantes!...
A vida seria minha, e o vento
saberia a fresco, como o sorriso de dois amantes.

O clima para mim é tudo,
senão não teria distracção.

Francisco Pires

terça-feira, 9 de novembro de 2010

...cafés e cigarros...

- reclamo para mim a inocuidade da minha traição, não consta dos acontecimentos trágicos, mas do revelado fetichismo da vida quotidiana.
- traição e inocuidade? inimigos irreconciliáveis nos dogmas petrificados da vida quotidiana. pagaste o serviço?
- tal atitude não se me revelou explicitamente importante.
- mas é claro que evidencia toda a importância, porque a procuraste?
- pelo amor incondicional que te tenho! pelo amor que me dizes ter. não posso dispensar esse amor. e tu? porque só agora me desprezas?
- pelo amor incondicional que te tinha, pelo erro grosseiro da tua traição, estou prisioneira dos petrificados dogmas da vida quotidiana.
- reclamo a inoquidade da minha traição, alheia a citações da tomada de consciência, tinha de te trair, estive enclausurado no meu amor, convulsiva teia de excremento! a traição era o acto e não a flecha. cativo naquele trágico escolho de insatisfação de ocupante do cais, enganando o tempo em cafés e cigarros... transbordando na vontade de fazer a romaria das artérias. anoitecias "mulher da noite doente em que os homens se perdem", eu transbordando de vontade de desfolhar a algazarra.
-traíste-me!
- como ousas? não alterei nenhuma das tuas regras, não abusei da tua vergonha, afinal foi pelo amor incondicional que te tenho. não posso dispensar esse amor. e tu? porque só agora me desprezas? ela libertou-te da fúria dos teus ciúmes,porque só agora não te deitas comigo?
- inverteste as leis naturais, não vejo utilidade nessa tua falsa consciência! não vejo utilidade em secar o calafrio do pêndulo.
- reclamo para mim a inocuidade da minha traição.
ana monteiro

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

...didascália...

Quão ténue será a linha que separa a realidade da imaginação? Será que conseguiremos distinguir em que mundo, em que dimensão estamos embrenhados? A quantos passos estaremos da loucura? Ou, vendo as coisas de outro prisma, a quantos passos estaremos da sanidade mental?
E se passarmos a vida a fazer-mo-nos passar por outros? Olhar-mo-nos todos os dias ao espelho e vermos todos os dias alguém diferente...conviver todos os dias com personalidades diferentes. Como é que lidamos quando numa noite morremos e minutos depois pedem-nos para fazer uma vénia perante uma audiência que aplaude entusiasticamente...o quê?...os pedaços da minha vida, a minha morte, o meu renascer das cinzas, o meu ressuscitar? O meu declínio...
Este é o momento certo para escrever sobre este tormento, porque tenho consciência, sou um espectador exterior do meu próprio percurso e estou a ver-me atravessar uma fronteira...
Jovem, audaz, perspicaz, capaz, competente, revejo-me a tomar a decisão, a optar por uma vida difícil, não habitual, pouco ortodoxa...não o típico rapaz que tira o curso de engenharia ou outra coisa qualquer, foi um exemplo escolhido ao acaso, admitindo que há acasos. Os primeiros papéis...tudo bem, os anos passam. Já me apaixonei vinte uma vezes, doze das quais fui bem sucedido, já matei quatro vezes, uma a mim próprio, fui homem quarenta vezes, mulher três, criança cinco, idoso dez, pai oito, animal uma vez, rei seis, soldado duas, escravo uma, cantor vinte, morri trinta e uma vezes...esta é uma das minhas vidas, não me perguntem qual, não sei responder, o que vejo é dúbio...
Depois vejo um casamento, um divórcio, um filho, uma casa, um apartamento, uma garrafa vazia...
Ambas as imagens são pitorescas, qual escolhiam? Mais importante, qual escolhi? Mais importante o que é que tanto aplaudem? Parem de se levantar, de sorrir tanto!
Já não consigo distinguir nada e dói-me a cabeça e eu já morri entendem? Então porque é que continuo a acordar e a morrer e a acordar? Porquê esta repetição incessante de um cenário já meu conhecido? Eu...será que eu fiz...fiz algo de errado? Morri mal? Pode-se morrer mal? Eu sou actor? Eu sou homem? Eu sou um homem que é actor...um actor que é homem...é, é, será possível ser ambos? Porque é que aplaudem? Sou um actor a fazer de actor? Um homem a fazer de homem? Um homem pode fazer de homem? É ... isto é aflitivo, sinto uma pedra de toneladas sobre o meu peito e custa...respirar...entendem? Porque é que aplaudem?
(Aplausos)
Que didascália é esta? Será a minha vida uma didascália à espera de ser seguida? Não? Era um monólogo? Era só um monólogo, um papel?
Mas porque é que aplaudem?...
Laura Silva

...coada do pensamento...

a vida corre no seu vagar
de resto e ao fim-ao-cabo
adivinha-se na cantaria dos ossos

a vida corre no altar clandestino
de resto e ao fim-ao-cabo
adivinha-se na coada do pensamento

a vida corre nos carrilhões impressos
de resto e ao fim-ao-cabo
adivinha-se no rebordo da rotina

e se alguém chegasse agora
na esperança de que chegasse um dia…
Ana Monteiro

...simetria...

(Algures numa aldeia histórica portuguesa, um casal)
Sujeito A: Hum o bar é capaz de estar fechado, a um domingo…
Sujeito B: Está sempre aberto, pelo menos sempre que cá vim estava aberto.
Sujeito A: Ah, pois está, entra.
(Entram, um bar rústico, constituído por duas divisões, uma logo à entrada e uma outra mais recôndita)
Sujeito B: Vamos para aquela sala, é mais engraçada.
(Sentam-se numa mesa de madeira onde consta um cinzeiro limpo. As paredes são de pedra e estão decoradas por quadros amadores e pratos decorativos representativos da região. Há umas escadas que conduzem para uma divisão superior que está mobilada de modo característico. Um homem vai à casa de banho. O jovem casal olha-se e riem-se)
Sujeito B: (sussurrando) Viste? Não lavou as mãos…
Sujeito A: E acho que é quem nos vai servir.
Sujeito B: Não gozes comigo sim?
(Risos)
Sujeito A: Acho que temos que ser nós a ir lá. O que é que queres? Queres amêndoa amarga? Licor beirão?
Sujeito B: Não me apetece. Estou com frio acho que quero uma caneca grande de café quentinho. Bebe tu uma macieira que gostas tanto! (Ri-se)
Sujeito A: Sim, pago e fico outra vez a olhar para aquela porcaria durante horas, só o cheiro…Sendo assim também bebo café. Queres comer?
Sujeito B: Querer queria mas a montra de bolos, bem digamos que não sei de onde vem o nome porque não tem bolos, só um queijo da serra partido.
Sujeito A: A sério? Deixa lá, comemos depois. Já venho.
Sujeito A: Tenho uma boa notícia e uma má notícia, qual queres primeiro?
Sujeito B: Primeiro a boa.
Sujeito A: Há café! Ah Ah
Sujeito B: E a má?
Sujeito A: Quem vai servir é…
Sujeito C: Aqui estão os cafezinhos.
Sujeito B: O gajo que não lavou as mãos…o que vale é que não sou uma pessoa que tenha assim nojo.
Sujeito A: É tudo natural!
Sujeito B: Exacto, exacto. Ah tão quentinho o café, esta terra é gelada, pior que a nossa. Devia ter vindo melhor agasalhada.
Sujeito A: Sim, já sabias que era assim, não vieste cá muita vez?
Sujeito B: Sim, sim. Quando era miúda vinha muito com os meus pais. Era engraçado, visitar castelos com eles, subi-los cheia de coragem e orgulho de mim própria e depois ficar lá em cima a chorar com medo de descer…(esboça um sorriso)
Sujeito A: A sério? Típico. Há bocado também estavas muito corajosa a tirar fotos aos cemitérios, às campas e depois toco-te no ombro e gritas (ri-se).
Sujeito B: Oh, não foi por estar num cemitério, ia-me assustar estivesse onde estivesse sim?!
Sujeito A: Sim, sim, mas porquê entrar lá, porquê a curiosidade?
Sujeito B: Não sei…acho os cemitérios muito bonitos, pacíficos, obviamente. Gosto de ver os que lá habitam. Ver as caras, os nomes, as datas, o que está escrito nas lajes…
Sujeito A: És mórbida…
Sujeito B: Nada disso, nada disso. É uma realidade ou não? Uma certeza, a única talvez…
Sujeito A: Sim mas…
Sujeito B: E reparaste na quantidade de pessoas que lá estavam que morreram no ano em que nós nascemos?
Sujeito A: Não estás a pensar falar sobre reencarnação pois não?
Sujeito B: Não, estou só a comentar dois factos, não a relacionar ou conjugar. Coincidências.
(Sujeito A tira toda a parafernália necessária para enrolar um cigarro)
Sujeito B: Pode-se fumar aqui?
Sujeito A: A mesa tem cinzeiro.
Sujeito B: Mas está ali um sinal a dizer que é proibido…oh, mas se disserem alguma coisa dizes que vimos o cinzeiro e pensámos que se podia fumar.
(Sujeito B tira um maço de Marlboro)
Sujeito A: (Com o filtro no canto da boca) Então e quando morreres que queres que grave na tua lápide?
Sujeito B: Depois eu é que sou mórbida?!
Sujeito A: Desculpa, é uma realidade!
Sujeito B: Engraçadinho, que engraçadinho. Eu respondo, mesmo sabendo que tu vais morrer primeiro porque és mais velho, homem e tratas-te pior do que eu!
Sujeito A: Tche que generalização!
Sujeito B: Bem acho que é redutor da minha vida se tudo o que tiverem a dizer for: “Esposa, mãe, avó amada e dedicada.” Por isso, aponta.
Sujeito A: Estás a falar a sério??
Sujeito B: Estás-me a ver a rir?! (Rindo-se)
Sujeito A: Por acaso sim, mas espera…
(Volta com um guardanapo e uma caneta)
Sujeito A: Força!
Sujeito B: “Espírito livre, carreira brilhante, vencedora de um (ou mais, logo se vê) Óscar, três globos de ouro, (depois revemos o resto dos prémios), companheira de vida fiel, apaixonada e apaixonante, mãe exemplar (do seu filho único), melhor avó do mundo…”
Sujeito A: Pára, pára já não tenho espaço no guardanapo! Acho que só falta acrescentar: extremamente humilde não?
(Risos)
(sujeito B sopra fumo propositadamente para a cara de sujeito A)
Sujeito A: Sim, isso afecta-me imenso porque eu nem sequer fumo não é?
Sujeito B: Não fumas esta marca! Ah ah Olha já reparaste que está ali uma guitarra? Pergunta lá se podes tocar…
Sujeito A: Queres que te faça uma serenata aqui é? Senhora espírito livre?
Sujeito B: Vá lá…
(Sujeito A levanta-se volta a aparecer com a guitarra)
Sujeito A: Acho que não vou poder fazer-te a serenata…
Sujeito B: Então?! Está desafinada?
Sujeito A: Não sei…
Sujeito B: Então? Então?
Sujeito A: É uma guitarra para esquerdinos! Repara, tem as cordas trocadas, anda cá, senta-te ao pé de mim, experimenta.
Sujeito B: Que estranho! Assim aprendem os acordes da mesma maneira que os destros.
Sujeito A: Se continuares a tentar tocar vamos ser expulsos daqui!
Sujeito B: Ah ah ah experimenta tu então!
Sujeito A: Não, não vou estragar a minha reputação.
Sujeito B: Qual?
Sujeito C: Olhem, desculpem, mas não se pode fumar aqui.
Sujeito A: Desculpe, é que como a mesa tinha um cinzeiro afinal era mesmo decorativo, vês, eu tinha-te dito! (ri-se de maneira matreira)
(Sujeito B abre a boca esboçando um sorriso espantada perante a acusação falsa)
Sujeito A: Hum…é possível levar o café?
Sujeito C: Ah…temos copos de plástico
Sujeito B: Pode ser, pode ser.
Sujeito C: Volto já então.
Sujeito A: Café sem cigarros…
Sujeito B: Não é café. E cigarros sem café…
Sujeito A: Não são cigarros…
(Levantam-se, sujeito A coloca o braço sobre sujeito B, caminham para a porta do café, param na saída, beijam-se, fumam, dão um gole no café e continuam andar. Simetria total)
Laura Silva

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Coffee and cigarretes

“Tony Steinberg: Bravo Guerreiro Viking do Sétimo Ano” Um poema de Taylor Mali

Já alguma vez viram um navio Viking feito de paus de gelados
E de contraplacado? Com montinhos de fios castanhos a fazer de cordas,
Dezasseis remos feitos de pauzinhos chineses, e uma vela vermelha e branca
Feita de um pijama de bebé?


Eu já.

Ele morreu com a espada na mão e assim foi directamente para o céu.

Os Vikings por vezes enterravam os seus bravos guerreiros em navios
Ou largavam-nos à deriva a arder, uma ilha de chamas flutuante.
A alma do bravo guerreiro erguendo-se lentamente com o fumo.
Para compreendermos a vida na Escandinávia da Idade Média,
Temos de conhecer o navio Viking.

Então o projecto é o seguinte:
A turma tem de construir um navio Viking em miniatura.
Têm um mês. E Têm de trabalhar em conjunto.
Como guerreiros.

Este é o tipo de projecto pelo qual os alunos me conhecem.
Como o Projecto da Pirâmide Egípcia.
Alguma vez viram uma família de quatro pessoas à volta de uma mesa, depois do jantar,
Cada um segurando uma face triangular de uma pirâmide em miniatura até a cola secar?
Eu também não, mas a Sra. Steinberg disse que demorou 90 minutos,
E que, mesmo com o irmão mais novo num dos lados a reclamar,
Isto é estúpido! Isto é uma pirâmide estúpida, Tony!
Vais ter negativa.
Se eu tiver o professor Mali no próximo ano, a minha pirâmide vai ser muito melhor que esta!
Cala-te, cala-te meu #.%&#!
Não, não, não! Segura bem o teu lado ou juro que te mato quando a cola secar!
Foi o melhor tempo que eles passaram em família desde o Natal.

Ele morreu com a espada na mão e assim foi directamente
Para o céu, que os Vikings chamavam Valhalla.

Professor Mali, se isso é verdade, se eles iam directamente para Valhalla
Se morressem com a espada na mão,
Então, se fosse um Viking velho e estivesse a morrer de velhice,
Ele podia guardar a espada de baixo da cama
E quando sentisse que ia morrer, podia agarrar a espada?

Não sei se os deuses deles permitiam uma coisa dessas,
Mas parece-me uma boa ideia.

O Tony já estava a faltar há um mês, quando soubemos o que se passava.
E os 12 restantes sussurraram o nome da doença
Como se se pudesse apanhá-la ao dizê-lo em voz alta.

Tínhamos sido avisados. O Director da Escola tinha vindo à sala
E tinha dito que o Tony voltaria na sexta-feira.
Mas que ele tinha passado um mau bocado.
Os remédios que ele anda a tomar causaram-lhe a queda do cabelo,
E ele agora sente-se um pouco envergonhado.
Por isso não fiquem a olhar, não apontem, não se riam.

Eu sempre disse que preferia ensinar numa escola particular
Porque assim podia falar acerca de Deus
Sem estar a infringir a lei.
E, para alguém criado na fé Episcopal e que apenas
 ia à Igreja no Natal e na Páscoa, eu até falava muito em Deus.
Em História, claro, isso é natural.
Até mesmo o Projecto da Pirâmide Egípcia é essencialmente um exercício espiritual.
Mas como é possível estudar geometria e não acreditar em Deus?

Um Deus de planos e de pontos perfeitos,
Rodeado de anjos e mais anjos de vários graus.
Um tal Deus não daria cancro a um rapaz do sétimo ano.
Não lhe deixaria cair o cabelo com a quimioterapia.
Completamente careca, de casaco e gravata, uma sexta-feira de manhã.
E não me refiro só ao Tony. Nem um único rapaz da turma tinha cabelo;
Os outro 12 tinham rapado o cabelo em solidariedade.
Alguma vez viram 13 rapazes do sétimo ano carecas,
 todos a apontar uns para os outros, todos a olhar, todos a rir?

Eu já.

É uma bela visão. E quase tão marcante como 12 rapazes
Seis semanas mais tarde, agora com o cabelo à escovinha, num Sábado de manhã,
À porta da sinagoga, com as cabeças baixas,
 de mãos dadas, em círculo
em redor dos restos fumegantes
de um navio Viking em miniatura,
a alma do bravo guerreiro
erguendo-se lentamente com o fumo.  


Tradução de Jaime Braz

terça-feira, 2 de novembro de 2010

"Tudo começa num encosto de lábios,
numa caricia promissora!
Tudo acaba num abandono, num qualquer balcão de bar dos suburbios...

Foi a ilusão daquela dança...
Aquele beijo longo!

A embriaguez que te empresto aos sentidos não chega,
e o que de mim reclamas é ilegítimo,
cruel,
doloroso com o esgotamento de tudo o que te posso entregar.

...

A ilusão daquela dança...
A frieza das necessidades!

Pudera eu ser suficiente para em mim te afogar
e talvez a tua indiferença não fosse tão natural, tão sorridente.

O que procuras sei que ninguém te pode dar,
porque o que procuras és tu,
e olhando o meu fundo sabes que estás longe,
muito longe
de encontrar.

Foi a ilusão daquela dança...
Aquela dança..."
                                                                 Francisco Pires

Estilhaços

Acordo, mais uma vez, para um mundo, um mundo no qual não posso desfrutar dos pequenos prazeres da vida. Um mundo onde não passo de um eterno e atento espectador. Sirvo de suporte ao elixir, ao soro da verdade, saceio os felizes, os infelizes, os infelizes que se fazem passar por felizes e os felizes inconscientes da sua infelicidade.
Nasci para servir os outros, sem me poder servir deles...fui dotado desta consciência que me atormenta diariamente, relembrando-me que eu, enquanto EU, não existo, existo apenas como ser inanimado. Não tive escolha, o único pensamento que ainda me alegra é que esses, os Homens, os suprasumos de tudo o que vive também podem não se sentir bem com eles próprios, podiam até preferir ser como eu, parte de um serviço de cristal de um bar! Não?!
Ontem tentei suicidar-me, quer dizer, tentei que alguém me assassinasse, passei a noite toda à ponta de um balcão à espera de levar uma cotevelada, cair e estilhaçar-me todo no chão! Mas nada...em vez disso passei a noite a assistir ao doce acariciamento das minhas bordas, uma volta, um sorriso, outra volta, uma palavra e ainda outra volta, os lábios tocavam-me e a marca do seu baton rasca ficava na minha superfície, o perfume igualmente rasca começava a provocar-me náuseas. Tinha a tez pálida, consegui concluí-lo após muito esforço a observar atentamente para além da maquilhagem altamente rebuscada, o cabelo ruivo, longo e com laca, o vestido preto, bastante folclórico. Chamava à atenção, errada, mas chamava.
Era algo inconstante, pois ora me abandonava e me deixava concentrar na minha tentativa de suícidio, ora voltava mais despenteada, com a maquilhagem desfeita, uma vez até trazia os collants rotos... Esta situação repetia-se sempre após a chegada de cada novo pretendente.
Uma vez, pouco depois de ter regressado, sabe-se lá de onde, levou-me para a casa de banho. Pensei que seria ali que me ia quebrar. Pousou-me num lavatório instável, fiquei esperançoso. Olhou-se ao espelho, cuspiu no seu reflexo com asco e começou a maquilhar-se, a pentear-se, mudou de meias, deu um gole em mim, levou-me embora, pousou-me no balcão e partiu. Deixou-me, literal e metaforicamente falando, vazio e desgastado...
Após o encontro perturbante de ontem, hoje penso que o que almejo está mais perto, pois temos um empregado novo! Será degradante morrer numa lavagem de louça? Mas se a grande raça também morre heroicamente afogado o mesmo se aplica a mim, não?!
Enquanto aguardo a hora em que serei livre, livre desta minha condição, que levaria tantos à demência, eu prolongo por mais alguns instantes o meu monólogo interior.
É ela?! É ela...voltou. Bem e aqui estou eu a ser cheio e a voltar para ela...
Aproxima-se alguém de nós, suponho que vá haver uma "excursão". Mas desta vez parece que eu também vou! Era só o que me faltava, olha que trio que eu arranjei, olha que...espera, talvez caia! Esta é na verdade uma óptima oportunidade. Entramos num quarto. Ele beija-a, eu abano, ela empurra-o, ele balbucia algo desdenhoso, pega-me e embat na cara de pânico dela!
SILÊNCIO
É o fim, vejo os meus fragmentos, vejo-a impávida e serena, de olhar frio, distante e estático. Mas...mas eu ainda penso! Neste momento invejo-a, ela roubou-me a vez, era a minha vez, a minha vez...
Enfim, passei de compacto e uno, pensante e atormentante a nada mais do que estilhaços, fragmentos, pensantes e atormentantes. Múltiplos de mim cujas vozes ecoam "Não há fim, só ha eterno" ...
Laura Silva

Metade persiana, metade muralha

"As escadarias são sempre um hipnótico aluvião para as crianças - as crianças são sempre sôfregas, indiferentes à secreta vida desta mulher, esquecida do frescor dessa agora indiferente escadaria. Mulher indiferente aos raios de sol coados pela persiana quase fechada. Podia introduzir o pormenor: nos quartos deste hospital as persianas nunca estão totalmente cerradas, mas cerram-se com a idade.
Podia introduzir o pormenor de alguém dizer na visita das cinco: “não há uma racionalidade simbólica entre os acontecimentos”, alguém que travava as lágrimas pelo jorrar das palavras, alguém que algemava as lágrimas no agónico aluvião das palavras.
Ao meu lado, em cima daquela mesa de frio metal… o vaso, exílio de todas as flores, isoladas do mau tempo, indiferentes à secreta vida desta mulher, agora de palidez frondosa, nunca desejou embarcar, cerrou a persiana com a idade.
Os segredos desta mulher: metade persiana, metade muralha de pedra… mitigou o frescor das escadas… enalteceu a proximidade do meu destino, ambos talha de faiança cilíndrica, isolados do mau tempo, no aluvião da agonia das gotas que se perdem por mim abaixo… todos os exílios são feitos de açoteias de cacos…
Ao meu lado, em cima daquela mesa de frio metal… o vaso, o dicionário das poeiras estrelares, pormenor que torna esse quarto história inverosímil, apesar de ser a única coisa verdadeira.
Os segredos desta mulher: conheceu Gibraltar, Marrocos, a Suíça, cinco dias e quatro noites onde procurou decantar histórias.
O irmão também queria a aquela casa onde se sobe uma escadaria de madeira, aquela com a porta de alumínio, branca. Não quis ceder, foi lá criada… e depois ainda tem aquela escadaria, em tempos gigante … sempre uma pantagruélica sedução na infância… oliveiras, em tempos gigantes, num quintal perto da feira, naquela ladeira onde fizera uma corrida até à capela de Santo Isidro…
Na estrada do fundão, lugar neutro, aquela paralela onde havia antes uma subida muito grande, hipnótico aluvião dos adultos... desfeita em cacos…
Os segredos desta mulher… os lábios continuam sôfregos… recolhem de mim as gotas perdidas, o forçado exílio… enaltece a proximidade do meu destino, a insonorização do quarto aguça os alvos sons… lá fora a dança dos sete cavalos… cá dentro, ainda, as algemas forçadas dos cacos…"
Ana Monteiro

Meio século na vida de um objecto e tornamo-nos antiguidades, foi nisso que nos tornámos os dezasseis que sobrevivemos

Entrámos na família da D. Conceição no dia do seu casamento. Éramos vinte e quatro, acabados de saír da fábrica da Marinha Grande. Na véspera e no dia do casamento estivémos expostos e fomos vistos por muitos convidados. Alguns pegavam-nos e observavam-nos à contra-luz. Um grupo de crianças que passou a correr quase nos partia a todos. Seguiram-se gritos e não voltàmos a ver crianças nesse dia. No dia seguinte ao casamento, fomos para um armário da sala de jantar da casa nova da D. Conceição, onde iríamos passar os próximos cinquenta anos. Meio século na vida de um objecto e tornamo-nos antiguidades, foi nisso que nos tornámos os dezasseis que sobrevivemos.
Do armário da sala de jantar descíamos, em ocasiões especiais, até à mesa grande que era posta com requinte. Aguardávamos sempre esses intervalos na imobilidade com um misto de alegria e apreensão que acompanham a vertigem do perigo. O convívio íntimo com os talheres de prata e com o serviço de porcelana, o nosso manuseamento por convivas alegres e descuidados foram a causa da perda de sete companheiros, reduzidos a cacos e varridos para o lixo. Eu próprio sobrevivi a três encontrões que iam sendo fatais.
A filha mais velha da D. Conceição veio do Canadá para vender a casa e a maior parte do recheio. Ela não nos escolheu. Ontem veio um homem da leiloeira, envolveu-nos em folhas de jornais velhos, fechou-nos num caixote e levou-nos num camião. Connosco veio também a mobília toda da sala de jantar, os pratos que restam do serviço de porcelana e uns bibelots inúteis que costumavam ganhar pó no corredor de acesso à cozinha.
Estamos aqui há três dias nesta enorme sala de leilões. Ontem e antes de ontem vieram muitos desconhecidos ver-nos. Pegavam em nós, observavam-nos à contra-luz, passavam o dedo pelo rebordo à procura de fracturas, antes de nos pousarem com cuidado. Uma família jovem demorou-se a olhar-nos e a falar de nós. Oxalá nos levem a todos para casa deles.
Hoje é finalmente o dia do leilão. O leiloeiro acaba de mencionar o lote trezentos e vinte e nove. Somos nós. O ajudante pegou-nos com cuidado e levou-nos para o estrado elevado. Começa a licitação. Aguardamos quietos, os dezasseis, o que o destino nos trouxer.
 
Jaime Braz

O BRINDE

Na última prateleira do velho guarda-loiça de carvalho a vida passa calidamente. Não se faz muita serventia na casa das peças de colecção desmembradas, contudo, airosas. Esperamos com o desenovelar dos instantes, observando os feixes luminosos que irrompem por entre os grossos cortinados de veludo vermelho e brincam com as gotículas de pó que planam em redor dos móveis. À noite entretemo-nos com a identificação dos sons característicos do ambiente campestre, intercalando o restolhar das folhas e o cantar dos grilos com as nossas memórias. E os dias decorrem tão calidamente quanto o nosso próprio existir.Mas quando há festa o respirar da casa modifica o seu compasso. A última prateleira do antigo guarda-loiça resplandece de expectativa. Sabemos que faremos parte da harmonia de cores e sabores que num repente invadirão esta sala tão quieta. Alinhados na alvura da toalha aguardamos a carícia de umas mãos, absorvendo as emoções sentidas e os pensamentos evocados. E hoje será um dia de festa.Intuímo-lo pelo apitar da panela de pressão, do chocalhar dos tachos, da quentura do fogão e do farfalhar das verduras. Silhuetas deslizam continuamente em ritmo acelerado, deixando atrás de si aromas fortes e adocicados. Especiarias e ervas aromáticas. O tostar do pão e o açúcar mascavado. O fritar do azeite e o requinte de frutos secos. Através do tom âmbar o meu corpo bojudo trepida no pé esguio. Retenho os múltiplos vapores, perscuto a dinâmica das facas e máquinas, vislumbro a disposição das iguarias no centro da mesa principal, enorme no seu acolhimento.Os convivas vão chegando, trazem risos e palavras, oferecem flores e sentimentos, acrescentam odores e cores. Misturam-se, partilham, isolam-se e voltam num encontro de olhares e encolher de ombros. A noite avança. As emoções adensam-se e as conversas sobem de tom. Depois um brinde… o brinde. Unidos na saudade que a morte concretizou e a vida teima em não esquecer. Também eu, no calor de uns lábios, relembro o seu olhar irrequieto, o sorriso traquina e ambíguo, a sua postura tranquila na agitação da interioridade e o afagar escorreito da sua barba ruiva.

Maria João da Silva