Como falar se são os lábios que nos tocam? Como viver estando preso dentro de um armário de madeira sem nunca ser tocado pelo calor e aconchego dos dedos, dormindo e vivendo silenciosamente ao lado de muitos outros iguais a nós? Como viver sentindo-nos culpados por não sermos de cristal mas apenas de vidro cobertos de pó? Desde que fora feito pelas mãos toscas e cheias de calos do vidreiro que o meu sonho era entrar nos salões de festa da Casa de Verão. Ver os cristais a reflectir a luz dos candeeiros dependurados e olhar para os azulejos, que cobriam toda a superfície, nos quais se dançavam valsas com passos leves e suaves como a brisa do vento. O meu desgosto de morte nesta vida era não ser de cristal, não dar luz, não ter beleza. Não ser como os que me rodeiam e saem à noite onde acontece magia, onde são acariciados, imaculados e não estão cobertos de pó. Onde não são esquecidos.
Era mais um dia húmido e escuro dentro do armário esperando ansiosamente por ser tocado pelo calor das mãos de um ser humano. Ser refrescado com doces gotas que jorram de jarras e de garrafas, de ser beijado e acariciado pela boca de quem me segura. De repente a prateleira abre-se e umas mãos sujas de terra agarram-me com delicadeza e transportam-me até ao lavatório onde fui ensaboado e seco por um pano com remendos. Olho para o lado e todos aqueles que me tinham acompanhado e me relataram a suas danças e bailes, os doces sabores que provaram e que os molharam, estavam agora dentro de velhas caixas de cartão amarrotadas. As mesmas mãos que me molharam cobrem-me com papel fino e seco, cheio de letras e fotografias a preto e branco com grandes títulos, e metem-me dentro de uma caixa de cartão. “Será que é o meu fim?” Olho para o interior da caixa e está vazia. Estava como o meu armário. Vazia, fria, escura… estava como o meu coração... uma prisão, sem luz e sem esperança… estava como esteve sempre a minha vida. Adormeço e quando acordo tinha deixado para traz toda a euforia e beleza da Casa de Verão. Estava agora num espaço escuro, mas não como o meu armário. Não como a minha vida. Desta vez notava-se nitidamente os móveis que me rodeavam, apesar da pouca luminosidade daquela divisão. A um canto via-se um armário, uma cama, uma mesa, uma velha escrivaninha e uma cadeira de uma madeira muito escura. O armário, ao contrário do que era de esperar, não tinha loiça de cristal nem talheres de prata. Apenas um prato rachado, um garfo e uma faca, e do outro lado vários livros de lombadas desgastadas pelo tempo e pelo uso. Na escrivaninha tombavam várias cartas sujas e enrugadas, com grossas lágrimas que caíam no branco do papel com sal de amor. Ao pé de mim estavam deitadas várias garrafas vazias e cheias com uma substância avermelhada e de sabor forte a taninos. A porta de madeira desgastada abre-se e sai de lá um homem alto e magro, de cabelo grisalho. Vestia uma camisa de cor cinza desabotoada, umas calças que tinham um aspecto mais velho do que o que ostentavam, e uns óculos com aros maiores que a cara rude e enrugada mas de traço fino. O homem pega em mim e despeja o resto do conteúdo da garrafa no meu interior e depois molha os seus lábios no frio do meu vidro e toma o conteúdo de um só trago. O homem era de ideias fixas, de mente fechada ao exterior e só saía de casa quando se lhe acabava a comida, quando as garrafas se esvaziavam ou quando o maço de tabaco que consumia ao longo do dia se acabava, e só restava um forte cheiro a fumo que inundava a pequena divisão da casa. Certo dia o homem com um forte cheiro a embriaguez vira-se para mim e apenas diz “Mesmo que sejas de vidro coberto de pó serás para mim sempre de cristal e darás luz à minha casa”. Por uns segundos parei de pensar, o que é absurdo pois não penso. Sempre pensei que o homem não tivesse sanidade mental, que fosse como os outros homens que só ligam a coisas importantes como a guerra, o dinheiro, as posses materiais e não a coisas sentimentais e que os livros fossem para ele apenas pechisbeque. Mas o homem que fumava um maço de cigarros por dia, que esvaziava uma garrafa esverdeada por dia, e que lia e relia cartas antigas de paixões ainda mais antigas, ligava a coisas pequenas. Olhava para uma flor e comentava o seu cheiro. Lia um livro e meditava sobre ele. Tomava uma refeição e agradecia o comer que tinha na mesa. Olhava para a loiça que jazia num canto do armário e dizia que para ele tal como eu era de cristal a loiça era de prata.
Só no fim da vida do homem é que soube como ele se chamava. Ele chamava-se António e vivera isolado, grande parte da sua vida, da civilização. Desde que era vivo que a sua dedicação era a poesia, a literatura e a arte da compreensão da vida. O homem tinha-se casado muito cedo, tinha um futuro promissor mas foi tudo abandonado por um incêndio. Tudo se evaporou. Tudo por causa de uma cinza de um cigarro mal apagada. Quando a sua vida deu uma volta maior do que a que ele tinha imaginado nunca fez luto. Nunca derramou uma única lágrima. Procurou durante muitos anos novamente o amor mas nunca encontrou nenhum amor igual ao primeiro. Desde o acidente que o homem nunca mais saiu de casa. Desde o acidente que o homem nunca mais foi homem. Passou a não viver, vivendo só. A única pessoa que o conhecia era o dono da mercearia da região, a quem o homem comprava a carne, o tabaco, as garrafas sujas de pó com um líquido encarnado e de cheiro forte, os livros que possuía e onde comprava a loiça quando a anterior se quebrava. Foi na mercearia que o homem me comprou.
Era um dia gélido de Outono e o sol ainda não tinha nascido quando o homem já estava diante do balcão de madeira corroída a comprar os últimos livros. Ele olhou para mim e tirou do bolso das calças uma carteira de couro e entregou uma nota. Pegou em mim e enfiou-me no saco juntamente dos livros com grandes títulos gravados na lombada e com muitas letras e muitos capítulos. Desde esse dia que eu e o homem passamos a ter um entendimento especial apesar de eu não me conseguir exprimir. Para o homem eu seria sempre de cristal e a loiça rachada e feita de barro de prata. Para o homem, a poesia seria sempre bela, sempre com um toque especial, quer fosse alegre ou triste. Mas quando o homem deu o último golo ao conteúdo da garrafa, na qual se ia acumulando o pó, e saiu de casa para procurar o seu verdadeiro amor e nunca mais voltou, a poesia nunca mais foi a mesma. As cartas de amor nunca mais foram lidas. Os livros nunca mais se espalharam pela prateleira. A escrivaninha nunca mais ficou coberta de folhas amarrotadas e amareladas. As garrafas nunca mais foram esvaziadas. A pequena e simples divisão nunca mais ficou com um forte cheiro a fumo. Agora apenas se cheirava o cheiro da saudade, do abandono, da poesia não declamada. A casa foi abandonada durante anos e anos. A madeira da cadeira ia ficando cada vez mais escura, as cartas iam ficando cada vez mais amarrotadas no frio da escrivaninha, e os livros, a cada dia que passava, lançavam um suspiro agudo e triste das saudades de serem lidos.
Só voltei a ver a luz do dia quando uma criança entrou sorrateiramente na casa do homem, pegou nos livros de lombadas gastas e em mim, e seguiu por um carreiro no meio da floresta que ia tapando cada vez mais a casa do homem. As mãos do menino eram mais pequenas e menos enrugadas que a do homem, mas tinham em comum o facto de ambas oferecerem uma pureza e uma ternura idêntica. O menino entrou num pequeno jardim com um canteiro de amores-perfeitos e entrou por uma pequena porta caiada e feita com madeira de pinho. Ele entrou e pôs-me no topo de uma mesa castanha com três cadeiras apoiadas a ela. A casa do menino era mais luminosa que a do homem. Olho para a porta por onde entrei através da qual o menino numa corrida louca sai para o pequeno jardim. Os livros da casa do homem repousavam ao meu lado com as lombadas cada vez mais frágeis e as páginas mais amareladas permanecendo ainda o grosso título no qual se lia “Contos de Eça de Queiroz”. A casa do menino era pequena mas colorida. Na parede onde se encontrava dependurado um velho relógio de cuco estavam vários quadros pintados com cores garridas, com pinceladas de luz. A um canto encontrava-se uma jarra com rosas e ao longe uma prateleira com pratos de cerâmica com flores pintadas à mão. No centro da sala estava uma mesa de madeira clara, na qual posava uma jarra que ilustrava uma floresta com três amores-perfeitos. A porta que dava ao jardim abre-se e entra uma pessoa com uma cabeleira ruiva, com um ar anafado e um bigodinho igualmente ruivo que usava uma camisa cor-de-rosa, calças vincadas e um casaco de cabedal. A figura de ar anafado pega nos livros que dormiam ao meu lado e lê as letras grossas da lombada. De seguida olha para mim e segura-me, passa-me pela delicada corrente fresca que saía da torneira, metendo-me depois de seco no armário bem junto dos que eram iguais a mim. “Estou novamente só”. “Desta vez é o meu fim”. Nessa noite pensando eu que seria novamente esquecido, as mão pequenas do menino agarram-me e transportam-me até ao pé do seu prato de sopa. A casa abundava num forte cheiro a alfazema. O menino olha para mim e fixando os seus olhos na transparência do meu vidro comenta: “Pai, amanhã posso levar o copo para o pintar na escola?”. A figura com um bigodinho ruivo olha para mim e apenas comenta: “Podes! Se concordares em que lhe ponhamos um amor-perfeito”. O homem anafado apesar do ar sisudo e mal-humorado era um ser afável. O menino pega em mim e transporta-me até ao seu quarto, põe-me em cima da colcha verde. Ele fica a olhar para mim com curiosidade e tira de uma caixa de cartão uma paleta, pincéis e tinta acrílica, metendo-me dentro de um saco de plástico juntamente com os restantes materiais de pintura. No dia seguinte, do cimo do peitoral da janela olho para o longínquo da paisagem e observo a densidade da floresta e para o laranja do sol a nascer. Olho para a cama e o menino ainda dormia sonhando com as cores com que me iria pintar. Ele acorda, pega em mim e o que me pareceram escassos minutos foram horas. O menino abre um guarda-fatos com cheiro a eucalipto e tira do seu interior uma camisa e umas calças. Veste-se e dirige-se para o pequeno jardim no exterior da casa, entra no autocarro que com no qual se lia letras com um traço grosso que diziam “ESCOLA”. O autocarro tinha um forte ruído devido à música que saía do velho e rouco rádio do autocarro. O autocarro saltava pela esburacada estrada que levava até à escola enquanto a música do rádio se ia confundindo com o mascar repetitivo das pastilhas elásticas. Chegado à entrada da velha escola, que conservava os anos e as memórias desde há muitos, muitos anos. O autocarro trava inundando o ar com o cheiro a borracha e a alcatrão. Abre as portas rangendo deixando sair em corrida, pelos degraus que levavam até ao átrio da escola, os alunos que conheciam cada canto e recanto daquela escola de paredes brancas de cal e de portas e portadas pintadas de azul ciano. O menino que me segurava dentro do saco, dirige-se para uma pequena sala na qual veste um bibe xadrez, e tirando-me de dentro do saco de plástico pousa-me no cimo de uma mesa branca. Pega num pincel de pêlo suave e fino, molha-o na tinta e com pinceladas harmoniosas e leves pinta-me com doces manchas de tons quentes e frios, com cores escuras e claras, com laranjas e azuis, com ternura e delicadeza. No fim da obra-prima ele olha para mim e diz:” Nunca vi obra mais bela!”. Nesse momento escorrego da mesa e estatelo-me no chão quebrando-me em vários cacos de vidro pintado.
Nos escassos segundos, em que pairei no ar, relembrei a minha vida passada. De solidão, de exclusão…de alegria e partilha. Fui de cristal e “dei luz” para o homem, fui belo para o menino. Nesse momento, já não estava estatelado no frio do chão da sala na qual o menino me pintou. Estava na Casa de Verão a ser segurado e acariciado por doces lábios, enquanto quem me pegava dançava uma valsa nos azulejos daquela superfície. Estava numa casa escondida pelas altas árvores da floresta com uma pequena divisão com um forte cheiro a fumo, com uma escrivaninha coberta de cartas de amor, com várias garrafas cheias e vazias por um líquido avermelhado de sabor forte e com um homem de cabelo grisalho que tinha encontrado o seu amor perfeito. Estava numa casa com um pequeno jardim, com amores-perfeitos, com um cheiro a alfazema, com um homem anafado com cabelo ruivo e um bigodinho igualmente ruivo e um menino que viviam nela. Estava longe de tudo e de todos. Estava na minha prateleira mas não estava só. Tinha a ternura, a poesia, a beleza e o amor a acompanharem-me.