terça-feira, 2 de novembro de 2010

Estilhaços

Acordo, mais uma vez, para um mundo, um mundo no qual não posso desfrutar dos pequenos prazeres da vida. Um mundo onde não passo de um eterno e atento espectador. Sirvo de suporte ao elixir, ao soro da verdade, saceio os felizes, os infelizes, os infelizes que se fazem passar por felizes e os felizes inconscientes da sua infelicidade.
Nasci para servir os outros, sem me poder servir deles...fui dotado desta consciência que me atormenta diariamente, relembrando-me que eu, enquanto EU, não existo, existo apenas como ser inanimado. Não tive escolha, o único pensamento que ainda me alegra é que esses, os Homens, os suprasumos de tudo o que vive também podem não se sentir bem com eles próprios, podiam até preferir ser como eu, parte de um serviço de cristal de um bar! Não?!
Ontem tentei suicidar-me, quer dizer, tentei que alguém me assassinasse, passei a noite toda à ponta de um balcão à espera de levar uma cotevelada, cair e estilhaçar-me todo no chão! Mas nada...em vez disso passei a noite a assistir ao doce acariciamento das minhas bordas, uma volta, um sorriso, outra volta, uma palavra e ainda outra volta, os lábios tocavam-me e a marca do seu baton rasca ficava na minha superfície, o perfume igualmente rasca começava a provocar-me náuseas. Tinha a tez pálida, consegui concluí-lo após muito esforço a observar atentamente para além da maquilhagem altamente rebuscada, o cabelo ruivo, longo e com laca, o vestido preto, bastante folclórico. Chamava à atenção, errada, mas chamava.
Era algo inconstante, pois ora me abandonava e me deixava concentrar na minha tentativa de suícidio, ora voltava mais despenteada, com a maquilhagem desfeita, uma vez até trazia os collants rotos... Esta situação repetia-se sempre após a chegada de cada novo pretendente.
Uma vez, pouco depois de ter regressado, sabe-se lá de onde, levou-me para a casa de banho. Pensei que seria ali que me ia quebrar. Pousou-me num lavatório instável, fiquei esperançoso. Olhou-se ao espelho, cuspiu no seu reflexo com asco e começou a maquilhar-se, a pentear-se, mudou de meias, deu um gole em mim, levou-me embora, pousou-me no balcão e partiu. Deixou-me, literal e metaforicamente falando, vazio e desgastado...
Após o encontro perturbante de ontem, hoje penso que o que almejo está mais perto, pois temos um empregado novo! Será degradante morrer numa lavagem de louça? Mas se a grande raça também morre heroicamente afogado o mesmo se aplica a mim, não?!
Enquanto aguardo a hora em que serei livre, livre desta minha condição, que levaria tantos à demência, eu prolongo por mais alguns instantes o meu monólogo interior.
É ela?! É ela...voltou. Bem e aqui estou eu a ser cheio e a voltar para ela...
Aproxima-se alguém de nós, suponho que vá haver uma "excursão". Mas desta vez parece que eu também vou! Era só o que me faltava, olha que trio que eu arranjei, olha que...espera, talvez caia! Esta é na verdade uma óptima oportunidade. Entramos num quarto. Ele beija-a, eu abano, ela empurra-o, ele balbucia algo desdenhoso, pega-me e embat na cara de pânico dela!
SILÊNCIO
É o fim, vejo os meus fragmentos, vejo-a impávida e serena, de olhar frio, distante e estático. Mas...mas eu ainda penso! Neste momento invejo-a, ela roubou-me a vez, era a minha vez, a minha vez...
Enfim, passei de compacto e uno, pensante e atormentante a nada mais do que estilhaços, fragmentos, pensantes e atormentantes. Múltiplos de mim cujas vozes ecoam "Não há fim, só ha eterno" ...
Laura Silva

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