"As escadarias são sempre um hipnótico aluvião para as crianças - as crianças são sempre sôfregas, indiferentes à secreta vida desta mulher, esquecida do frescor dessa agora indiferente escadaria. Mulher indiferente aos raios de sol coados pela persiana quase fechada. Podia introduzir o pormenor: nos quartos deste hospital as persianas nunca estão totalmente cerradas, mas cerram-se com a idade.
Podia introduzir o pormenor de alguém dizer na visita das cinco: “não há uma racionalidade simbólica entre os acontecimentos”, alguém que travava as lágrimas pelo jorrar das palavras, alguém que algemava as lágrimas no agónico aluvião das palavras.
Ao meu lado, em cima daquela mesa de frio metal… o vaso, exílio de todas as flores, isoladas do mau tempo, indiferentes à secreta vida desta mulher, agora de palidez frondosa, nunca desejou embarcar, cerrou a persiana com a idade.
Os segredos desta mulher: metade persiana, metade muralha de pedra… mitigou o frescor das escadas… enalteceu a proximidade do meu destino, ambos talha de faiança cilíndrica, isolados do mau tempo, no aluvião da agonia das gotas que se perdem por mim abaixo… todos os exílios são feitos de açoteias de cacos…
Ao meu lado, em cima daquela mesa de frio metal… o vaso, o dicionário das poeiras estrelares, pormenor que torna esse quarto história inverosímil, apesar de ser a única coisa verdadeira.
Os segredos desta mulher: conheceu Gibraltar, Marrocos, a Suíça, cinco dias e quatro noites onde procurou decantar histórias.
O irmão também queria a aquela casa onde se sobe uma escadaria de madeira, aquela com a porta de alumínio, branca. Não quis ceder, foi lá criada… e depois ainda tem aquela escadaria, em tempos gigante … sempre uma pantagruélica sedução na infância… oliveiras, em tempos gigantes, num quintal perto da feira, naquela ladeira onde fizera uma corrida até à capela de Santo Isidro…
Na estrada do fundão, lugar neutro, aquela paralela onde havia antes uma subida muito grande, hipnótico aluvião dos adultos... desfeita em cacos…
Os segredos desta mulher… os lábios continuam sôfregos… recolhem de mim as gotas perdidas, o forçado exílio… enaltece a proximidade do meu destino, a insonorização do quarto aguça os alvos sons… lá fora a dança dos sete cavalos… cá dentro, ainda, as algemas forçadas dos cacos…"
Ana Monteiro
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