terça-feira, 2 de novembro de 2010

Meio século na vida de um objecto e tornamo-nos antiguidades, foi nisso que nos tornámos os dezasseis que sobrevivemos

Entrámos na família da D. Conceição no dia do seu casamento. Éramos vinte e quatro, acabados de saír da fábrica da Marinha Grande. Na véspera e no dia do casamento estivémos expostos e fomos vistos por muitos convidados. Alguns pegavam-nos e observavam-nos à contra-luz. Um grupo de crianças que passou a correr quase nos partia a todos. Seguiram-se gritos e não voltàmos a ver crianças nesse dia. No dia seguinte ao casamento, fomos para um armário da sala de jantar da casa nova da D. Conceição, onde iríamos passar os próximos cinquenta anos. Meio século na vida de um objecto e tornamo-nos antiguidades, foi nisso que nos tornámos os dezasseis que sobrevivemos.
Do armário da sala de jantar descíamos, em ocasiões especiais, até à mesa grande que era posta com requinte. Aguardávamos sempre esses intervalos na imobilidade com um misto de alegria e apreensão que acompanham a vertigem do perigo. O convívio íntimo com os talheres de prata e com o serviço de porcelana, o nosso manuseamento por convivas alegres e descuidados foram a causa da perda de sete companheiros, reduzidos a cacos e varridos para o lixo. Eu próprio sobrevivi a três encontrões que iam sendo fatais.
A filha mais velha da D. Conceição veio do Canadá para vender a casa e a maior parte do recheio. Ela não nos escolheu. Ontem veio um homem da leiloeira, envolveu-nos em folhas de jornais velhos, fechou-nos num caixote e levou-nos num camião. Connosco veio também a mobília toda da sala de jantar, os pratos que restam do serviço de porcelana e uns bibelots inúteis que costumavam ganhar pó no corredor de acesso à cozinha.
Estamos aqui há três dias nesta enorme sala de leilões. Ontem e antes de ontem vieram muitos desconhecidos ver-nos. Pegavam em nós, observavam-nos à contra-luz, passavam o dedo pelo rebordo à procura de fracturas, antes de nos pousarem com cuidado. Uma família jovem demorou-se a olhar-nos e a falar de nós. Oxalá nos levem a todos para casa deles.
Hoje é finalmente o dia do leilão. O leiloeiro acaba de mencionar o lote trezentos e vinte e nove. Somos nós. O ajudante pegou-nos com cuidado e levou-nos para o estrado elevado. Começa a licitação. Aguardamos quietos, os dezasseis, o que o destino nos trouxer.
 
Jaime Braz

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