terça-feira, 2 de novembro de 2010

O BRINDE

Na última prateleira do velho guarda-loiça de carvalho a vida passa calidamente. Não se faz muita serventia na casa das peças de colecção desmembradas, contudo, airosas. Esperamos com o desenovelar dos instantes, observando os feixes luminosos que irrompem por entre os grossos cortinados de veludo vermelho e brincam com as gotículas de pó que planam em redor dos móveis. À noite entretemo-nos com a identificação dos sons característicos do ambiente campestre, intercalando o restolhar das folhas e o cantar dos grilos com as nossas memórias. E os dias decorrem tão calidamente quanto o nosso próprio existir.Mas quando há festa o respirar da casa modifica o seu compasso. A última prateleira do antigo guarda-loiça resplandece de expectativa. Sabemos que faremos parte da harmonia de cores e sabores que num repente invadirão esta sala tão quieta. Alinhados na alvura da toalha aguardamos a carícia de umas mãos, absorvendo as emoções sentidas e os pensamentos evocados. E hoje será um dia de festa.Intuímo-lo pelo apitar da panela de pressão, do chocalhar dos tachos, da quentura do fogão e do farfalhar das verduras. Silhuetas deslizam continuamente em ritmo acelerado, deixando atrás de si aromas fortes e adocicados. Especiarias e ervas aromáticas. O tostar do pão e o açúcar mascavado. O fritar do azeite e o requinte de frutos secos. Através do tom âmbar o meu corpo bojudo trepida no pé esguio. Retenho os múltiplos vapores, perscuto a dinâmica das facas e máquinas, vislumbro a disposição das iguarias no centro da mesa principal, enorme no seu acolhimento.Os convivas vão chegando, trazem risos e palavras, oferecem flores e sentimentos, acrescentam odores e cores. Misturam-se, partilham, isolam-se e voltam num encontro de olhares e encolher de ombros. A noite avança. As emoções adensam-se e as conversas sobem de tom. Depois um brinde… o brinde. Unidos na saudade que a morte concretizou e a vida teima em não esquecer. Também eu, no calor de uns lábios, relembro o seu olhar irrequieto, o sorriso traquina e ambíguo, a sua postura tranquila na agitação da interioridade e o afagar escorreito da sua barba ruiva.

Maria João da Silva

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